18 de mai. de 2016



ROBERTO VIEIRA

A casa era modernosa, estilizada. Havia nela algo de futurista em sua decoração. Móveis e utensílios domésticos espalhados com precisão geométrica. Tudo para o bem estar dos olhares admirados de Judite que adorava cada coisa em seu lugar. A única coisa que destoava do mobiliário era aquela rede cearense na varanda. Uma completa estrangeira na paisagem da residência.
A rede vivia sua existência básica e nordestina em paz, até o dia em que irrompeu na casa a mãe de Judite, radiante e militarista. Beijou a filha e os netos, ignorou a presença do genro sentado no sofá lendo Dom Casmurro, conferiu o trabalho da diarista que arrumava a cozinha, sentou-se satisfeita no sofá e no momento em que ia elogiar a filha, sentiu um calafrio súbito e calamitoso:
- Que rede é aquela na varanda, Judite?
Antes que Judite pudesse responder, a sogra começou a vituperar contra a pobre rede indefesa. Que estrupício, que insanidade, que artefato Neandertal e rocambolesco ousava habitar a casa impecável de sua única filha! Durante minutos, a sogra esmerilhou os detalhes cruéis do objeto inanimado em total discordância com a estética cultural reinante para aqueles de bom gosto.
A rede a tudo ouvia calada e tristonha. Nem um murmúrio de defesa esboçou a pobre relíquia dos tempos passados. Consigo mesma, a rede carregava a certeza de que o futuro seria a lata do lixo da história. Sua branquidão inocente se tingiu de vergonha e amargura. Diante dos ataques e impropérios, apenas o silêncio e a rede.
Quando a sogra finalmente foi embora, Judite ergueu seus olhos para o marido em agradecimento. Ele continuara a leitura de Dom Casmurro sem dizer uma palavra sequer. As palavras de Machado de Assis pareciam absorver todo o espectro de vida do homem naquela tarde de maio. Suas únicas palavras foram de despedida da sogra que partia.
Ao se fechar a porta da casa, ao voltar a reinar a tranquilidade na residência da Rua Almirante Salgado Neves, o marido foi até a varanda e se deitou preguiçosamente na velha amiga. Braços dados ao livro de Machado de Assis, balançando na brisa que vinha modorrenta do mar, o homem e a rede reataram a antiga amizade que vinha dos tempos de República, quando na ausência de cama, a velha rede fizera tantas vezes de leito para o pobre estudante que vinha do Crato.
A rede compreendeu o gesto e o afago. Os móveis da casa eram belos, modernos, caros, sofisticados. Os utensílios domésticos eram futuristas, digitais, midiáticos.
Mas apenas ela entre todos era amada naquela casa. Apenas ela era maior que a vida.
E caso ela não fosse rede, além do silêncio, veríamos também uma lágrima de felicidade nas tranças do velho algodão...  


3 comentários:

  1. Antonio (volta Aflitos...)18 de maio de 2016 às 11:21


    é... é querido amigo poeta Roberto,


    a rede... a rede faz-me lembrar de uma frase que não me sai da mente:


    "quem tem um endereço como a Rosa e Silva NÃO TEM O DIREITO de abandoná-lo"...

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  2. Haverá elementos auto-biográficos na Crônica do Mestre? Kkk. Machado e uma rede combinam bem, assim como Dumas e uma rede, Stevenson e uma rede, Dickens e uma rede, ...

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Comentários