ROBERTO VIEIRA
A casa era modernosa,
estilizada. Havia nela algo de futurista em sua decoração. Móveis e utensílios
domésticos espalhados com precisão geométrica. Tudo para o bem estar dos
olhares admirados de Judite que adorava cada coisa em seu lugar. A única coisa
que destoava do mobiliário era aquela rede cearense na varanda. Uma completa
estrangeira na paisagem da residência.
A rede vivia sua existência
básica e nordestina em paz, até o dia em que irrompeu na casa a mãe de Judite,
radiante e militarista. Beijou a filha e os netos, ignorou a presença do genro
sentado no sofá lendo Dom Casmurro, conferiu o trabalho da diarista que
arrumava a cozinha, sentou-se satisfeita no sofá e no momento em que ia elogiar
a filha, sentiu um calafrio súbito e calamitoso:
- Que rede é aquela na
varanda, Judite?
Antes que Judite
pudesse responder, a sogra começou a vituperar contra a pobre rede indefesa.
Que estrupício, que insanidade, que artefato Neandertal e rocambolesco ousava
habitar a casa impecável de sua única filha! Durante minutos, a sogra
esmerilhou os detalhes cruéis do objeto inanimado em total discordância com a
estética cultural reinante para aqueles de bom gosto.
A rede a tudo ouvia
calada e tristonha. Nem um murmúrio de defesa esboçou a pobre relíquia dos
tempos passados. Consigo mesma, a rede carregava a certeza de que o futuro
seria a lata do lixo da história. Sua branquidão inocente se tingiu de vergonha
e amargura. Diante dos ataques e impropérios, apenas o silêncio e a rede.
Quando a sogra
finalmente foi embora, Judite ergueu seus olhos para o marido em agradecimento.
Ele continuara a leitura de Dom Casmurro sem dizer uma palavra sequer. As
palavras de Machado de Assis pareciam absorver todo o espectro de vida do homem
naquela tarde de maio. Suas únicas palavras foram de despedida da sogra que
partia.
Ao se fechar a porta da
casa, ao voltar a reinar a tranquilidade na residência da Rua Almirante Salgado
Neves, o marido foi até a varanda e se deitou preguiçosamente na velha amiga.
Braços dados ao livro de Machado de Assis, balançando na brisa que vinha
modorrenta do mar, o homem e a rede reataram a antiga amizade que vinha dos
tempos de República, quando na ausência de cama, a velha rede fizera tantas
vezes de leito para o pobre estudante que vinha do Crato.
A rede compreendeu o
gesto e o afago. Os móveis da casa eram belos, modernos, caros, sofisticados. Os
utensílios domésticos eram futuristas, digitais, midiáticos.
Mas apenas ela entre
todos era amada naquela casa. Apenas ela era maior que a vida.
E caso ela não fosse
rede, além do silêncio, veríamos também uma lágrima de felicidade nas tranças
do velho algodão...
ResponderExcluiré... é querido amigo poeta Roberto,
a rede... a rede faz-me lembrar de uma frase que não me sai da mente:
"quem tem um endereço como a Rosa e Silva NÃO TEM O DIREITO de abandoná-lo"...
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirHaverá elementos auto-biográficos na Crônica do Mestre? Kkk. Machado e uma rede combinam bem, assim como Dumas e uma rede, Stevenson e uma rede, Dickens e uma rede, ...
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