5 de jun. de 2021




 O NOVO MANIFESTO DE GLASGOW 


Por ROBERTO VIEIRA


Estamos no último dia de junho de 1973 na Escócia. A seleção brasileira realiza uma excursão meio capenga pela África e Europa. Na mala, duas derrotas inesperadas para Itália e Suécia, uma vitória surpreendente sobre os alemães com gol de Dirceuzinho e um futebol sem sal que enerva os repórteres enviados para fazer a cobertura dos então tricampeões do mundo. Sem Pelé, sem Gerson e sem Tostão a seleção é um amontoado de jogadores procurando manter a sombra do passado de chuteiras imortais, diria Nelson Rodrigues.


Os jornalistas brasileiros chegam ao Hotel Albany, à espera das credenciais para assistir ao jogo Brasil x Escócia. É quando descobrem que os atletas se negam a dar entrevistas aos repórteres em campo. A decisão dos jogadores se deu após a chegada do presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) com recortes de jornais do Brasil que descem a lenha na excursão. O episódio se soma às críticas do chefe da delegação Sílvio Pacheco após a derrota da seleção em Estocolmo. O capitão da seleção, o cruzeirense Wilson Piazza, toma a decisão com seus companheiros, de escrever um texto com abaixo assinado denunciando como inverídico o desligamento de Rodrigues Neto da seleção por indisciplina, assim como possíveis críticas de Paulo César Carpegiani ao técnico Zagalo. 

Piazza afirma que após o jogo contra a Escócia irá explicar os motivos da decisão.


O texto contra os jornalistas brasileiros ganha o histórico nome de Manifesto de Glasgow. Após a vitória de 1x0 sobre a Escócia, apenas jornalistas estrangeiros têm acesso ao time para entrevistas. Os jornalistas brasileiros ficam no saguão que dá acesso aos vestiários do Estádio Hampden Park, enquanto os atletas passam correndo em direção ao ônibus da seleção. Peter Pullen, representante da CBD na Inglaterra, é quem distribui as cópias xerox do texto para a imprensa mundial.


O abaixo-assinado começa assim:


‘Aos membros da imprensa do Brasil, escrita, falada e televisada: Nós, abaixo-assinados, jogadores da Seleção Brasileira de futebol, reunidos no dia 29 do corrente, no Hotel Albany, em Glasgow, Escócia, para discutir normas de relacionamento com a imprensa brasileira, chegamos a seguinte decisão…’


Em seguida, o documento expõe seu ‘repúdio em face dos recentes acontecimentos’ e se coloca 'consciente de havermos tomado uma decisão histórica nos anais do desporto, esperamos que nossa posição sirva de exemplo aos demais jogadores brasileiros que na realidade são os grandes prejudicados por esta parte da nossa imprensa desportiva tão mal despreparada e mal intencionada’.


Os 21 jogadores da seleção assinam o documento. O técnico Zagalo manifesta sua solidariedade ao time: ‘Essa decisão não foi ideia nossa, mas não posso furar o movimento deles. Podemos falar de muitas coisas menos de futebol e seleção’.


O Brasil vivia um momento de ditadura e censura. Quando o manifesto ganha as páginas da imprensa, se estabelece uma guerra surda entre jogadores e imprensa. A imprensa brasileira já tinha problemas demais com a censura prévia e não esperava decerto aquele posicionamento inédito dos atletas. Nunca na história da seleção, uma decisão partida dos jogadores havia ganho as páginas de um abaixo-assinado e as manchetes de todo o mundo. 


A chegada da seleção ao Brasil foi tumultuada. Os jornalistas acusaram o golpe como um golpe da própria ditadura. O clima ficou tão pesado que, exatos trinta dias depois, na Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo, sete jogadores paulistas daquela seleção assinam um documento de paz com a imprensa paulista. João Leiva Filho, Emerson Leão, Clodoaldo Tavares Santana, Luís Pereira, Jonas Eduardo (Edu), Roberto Rivelino e José Maria Rodrigues Alves (Zé Maria) ratificam que desejam ‘tornar sem efeito o Manifesto’.


Nos meses que se seguiram, o Manifesto de Glasgow atingiu em cheio o time do Flamengo que possuía cinco convocados daquela seleção, além do técnico Zagalo que treinava o clube da Gávea e a seleção. Símbolo de censura numa época de ditadura, o Manifesto jamais foi repetido pela seleção brasileira, apesar de episódios esporádicos de guerra dos nossos jogadores contra a mídia, o que de resto acontece em todo o mundo, a própria seleção italiana já tendo sido campeã do mundo em 1982 sem falar com os jornalistas da Velha Bota. 


Isto é, a ideia de um manifesto não havia sido aventada até hoje. Porque hoje, a imprensa publica que os jogadores da seleção preparam ‘manifesto sobre Copa América e querem evitar politização’.


Melhor usar outro termo.


Palavra daqueles 21 jogadores de 1973...



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