18 de out. de 2016



Os textos abaixo - ambos antológicos - pertencem ao memorial do Blog. Dos tempos inocentes do Blog, tempos que não voltarão mais... ficaram os textos e os amigos, o que não é pouco e pode ser tudo. Estes textos dizem mais sobre Nelson Rodrigues do que todas as antologias que circulam por aí... bom proveito!





Por ARSENIO MEIRA DE VASCONCELLOS





Dando uma benéfica pausa nos recursos judiciais (terminei um ainda há pouco) mando pra vocês - logo abaixo - uma crônica autobiográfica de Nelson Rodrigues. Podem pular até essa introdução. Basta ler a crônica , é uma das coisas mais bonitas que há. Escrevo rápido. Só mandei esse texto pros meus pais e irmãos, e agora pra vocês e João Carlos. Esse texto faz parte do primeiro volume de memórias de Nelson Rodrigues. E eles as tinha pra contar... como vocês sabem.

Tanto é que foram - salvo engano - uns cinco livros só com suas memórias.

Em todos, o sentido humano desponta aos olhos, ao lado de uma prosa imersa numa fluência narrativa que captura a alma do leitor. A vida dele não foi, digamos, um céu azul, pois sempre vulnerável a irascíveis relâmpagos e trovoadas do destino...

Ruy Castro imortalizou-se ao escrever a biografia dele (um livraço que meus pais me deram e que me ensinou coisas que são impagáveis), e foi Ruy o principal responsável a resgatar a obra de Nelson nos anos 90. Não tem preço.

Todos os volumes são em forma de crônicas. Deliciosas, tristes, ferinas, arrebatodoras, hilárias, com histórias dentro das histórias, as obsessões dele, a vida no país, a vida dele, a vida dos personagens que habitaram o universo dele; enfim, como a vida era naqueles idos dos anos 40, 50 e 60, a vida como ela é, ainda hoje..

Gosto bastante de um outro volume intitulado O REACIONÁRIO: nele estão as memórias-crônicas mais desmisitificadoras, as mais contestantes, desafiadoras, ferinas e polêmicas. Tem um livro que se chama A CABRA VADIA.. (ehehehe) até hoje rio só de lembrar algumas passagens. Vou reler, por falar nisso.

Ele amava uma polêmica e praticava um cabotinismo até hilário... Mas era corajoso, autêntico e um verdadeiro terror para os "eleitos"... No entanto, esse texto que envio pra vocês é demais.

De todos os livros de Nelson, A MENINA SEM ESTRELA é o mais genial, o maior; a opinião é quase unânime (o próprio Nelson não reclamava: afinal foi ele o autor da famosa frase: "toda a unâmidade é burra"...).

Nesse texto, Nelson narra um dos seus grandes dramas pessoais. A crônica-memória foi batizada por Otto Lara Resende como "uma das mais belas páginas da língua portuguesa".

Gullar, que viveu essa época, depois de ler o texto (saía primeiro no jornal, depois é que organizava-se em livro), nunca mais conseguiu enxergar Nelson da forma como enxergava antes, com os olhos da animosidade por questões políticas: Gullar era esquerda mesmo, e Nelson era um autêntico reaça.

Naquela época era assim. Um acirramento total. Ou você era esquerda ou não valia uma migalha.

E Nelson, vivendo entre jornalistas, dramaturgos, poetas, boemios, cantores, reporteres, atrizes, atores, diretores de teatro e etc, enfim, entre a fina flor da esquerda festiva e da mais combativa, permaneceu sempre fiel a suas convicções até o dia de sua morte; ele pouco se importava com as agressões da esquerda ou o fato de ser o patinho feio, a despeito da admiração que todos sentiam por ele, pela obra dele.

Ele não queria nem saber... Odiava o comunismo, era a opinião dele, e ele era incapaz de agredir alguém, mas se provocado (não raro, era o aque ele queria) arrasava definitivamente com finura, saracasmo e exatidão o provocador, no artigo do dia subsequente. Uma prova viva de inteligência. Jornais nunca lhe faltaram. E hoje, sobram Jornais, e não existem mais Nelsons Rodrigues.

Ele gostava mesmo de aparecer e de suscitar polêmicas, mas nem por isso, vinha com conversa mole. Ele jogava limpo (de quando em quando passava dos limites, mas sem maldade).

Até Drummond, que não simpatizava em nada com ele (a recíproca era mútua), emocionou-se com esse texto. Mas logo passou, e a antipatia perdurou, pois Nelson - às vezes - enchia mesmo a paciência, e Drummond certa vez perdeu a paciência, pois não via sentido algum em escrever um artigo laudatório a pedido do próprio Nelson, sobre uma obra do próprio Nelson, quando ele, Nelson, já estava bem cotado com todos... Era o lado cabotino dele. Depois disso, toda vez que Nelson referia-se a Drummond, dizia que o poeta tinha uma aridez de três desertos... (kkkkk). Mas aí eu nunca concordei. Drummond é intocável.

Vinicius de Moraes, que com Nelson pouco conviveu (eram universos diametralmente opostos, distintos e distantes) ao ler a crônica, foi pessoalmente dar-lhe um abraço, mas Nelson já tinha dado o expediente no Correio da Manhã por encerrado. O poeta não perdeu tempo: aproveitou para tomar um porre no boteco mais próximo. Resultado: uma sucessão interminável de brindes imaginários para o autor da crônica abaixo, que era abstêmio de carteirinha (o que o tornava também um peixe fora d'água, pois o pessoal tinha por regra esvaziar o estoque dos bares.)

Em restaurantes, Nelson chamava o garçom e pedia água, mas com uma condição: só serviria se fosse água de bica, pura, cristalina; equanto isso, fumava seu trigésimo caporal amarelinho, um tradicional estoura pulmões da época. O equivalente a um hollywood duplicado.

Nelson tinha a saúde bastante frágil. Ele não bebia em função de uma úlcera que lhe torturava a alma... já bastavam os caporais tragados com sofreguidão. Mesmo sem a garapa, ele tornava-se o centro das atenções, tamanha sua sedução para contar histórias. São pequenas notícias que nos enchem a alma.

Segue a história real escrita por Nelson, e com ela, o abraço fraterno do amigo rubronegro de vocês,


(capítulo 10)


"Volto aos meus quatro anos. E, de repente, os cegos apareceram. Ou por outra: — antes dos cegos, vi uma menina, de pé no chão. A menina corre, atravessa a rua e vai beijar a mão de um padre. Durante toda a minha infância, na rua Ale gre, havia sempre um padre e sempre uma menina para lhe beijar a mão. Mas como ia dizendo: — a pequena, dos seus sete anos, voltou para a calçada de cá. A batina continuou e sumiu, lá adiante, na primeira esquina.

A menina sumiu também, como se jamais tivesse existido. Anos depois, mudamos para a Tijuca, Rua Antônio dos Santos (depois seria Clóvis Bevilacqua). Perto de nós, morava o juiz Eurico Cruz e, ao lado, o senador Benjamin Barroso. Eis o que quero dizer: — nos dois ou três anos de Tijuca, não vi um único e escasso padre. Havia uma igreja — e ainda há — na esquina de Barã o de Mesquita com Major Ávila. Lembro-me da igreja, dos santos e não dos padres.

Fiz o parêntese e volto à rua Alegre. Depois que o padre dobrou a esquina, os cegos apareceram. Eram quatro e um guia. Estavam de chapéu, roupa escura, colarinho, gravata, colete, botinas. Juntaram-se na esquina da farmácia e tocaram violino. Não acordeão, não sanfona, mas violino. Saí da janela, fiz a volta e fui ver, de perto, os ceguinhos. Eram portugueses. E o curioso e que, por muitos anos, só conheci cegos portugueses. Brasileiro, nenhum.

Fiquei ali, na esquina, em adoração. E os cegos — todos de chapéu — tocaram uns vinte minutos. Lembro-me bem: — um deles tinha, atravessando o colete de um bolso a outro bolso, uma corrente de ouro. No fim o guia passou o pires. Cada um pingou seu níquel. E, então, voltei correndo para casa. Não falei com ninguém, meti-me na cama. Minha vontade era morrer. Fechei os olhos, entrelacei as mãos, juntei os pés. Morrer. Minha mãe entrou no quarto; pousou a mão na minha testa: — "O que é que você comeu?". Comecei a chorar, perdido, perdido.

E, de repente, uma certeza se cravou em mim: — eu ia ficar cego. Deus queria que eu ficasse cego. Era vontade de Deus. Mas falei em quatro anos. Engano, engano. Eu tinha seis anos e não quatro. Nasci em 1912 e isso aconteceu em 1918, na espanhola e antes da espanhola. Tenho certeza: — seis anos. Nunca mais me esqueci dos cegos e posso repetir, sem medo da ênfase: — nunca mais. Mas por que, meu Deus, por que pensava neles, dia e noite? Pode parecer uma fantasia de menino triste. E se disser que, já adulto, homem feito, a obsessão continuava intacta? Obsessões, sempre as tive. Mas essa nunca me abandonou. Aos trinta anos, 35, quarenta, eu sonhava com os cegos; e os via escorrendo do alto da treva.

Quando minha família já ia sair de Aldeia Campista para a Tijuca, aconteceu o seguinte: — um menino, que brincava muito comigo, apanhou um canário e picou com o alfinete os olhos do passarinho. Eu me senti, eu, aquele canário de olhos furados. E me imaginei cego, em casa, vagando por entre mesas e cadeiras. Meninas, senhoras, visitas teriam pena de mim, amor por mim. Na rua, diriam: — "Naquela casa, mora um menino cego".

Mas quando mudamos para a Tijuca, já não estava tão certo se seria mesmo eu o cego. Podia ser minha mãe, ou um dos meus irmãos. Talvez Roberto. Milton, não, nem Mário. Sempre imaginei que meu pai, jornalista de fúrias tremendas, morresse, um dia, assassinado. Já minha mãe tinha um problema de visão. Mas fosse eu, minha mãe, meu irmão, alguém ficaria cego, alguém. Eis a verdade: — ano após ano, me convencia de que os cegos do violino insinuavam um vaticínio. Meu Deus, não fora por acaso que, um dia, quatro cegos tocaram embaixo de minha janela, ou pertinho de minha janela. Tocavam para mim, não para os outros, não para ninguém, tocavam para um menino de seis anos.

Até os dez anos, doze, não tive medo da treva. Houve um momento em que teria a vaidade de ser o único menino cego da rua Mas o tempo foi passando. E o pavor veio com a idade. Adulto, eu não fazia mistério: — "Se eu ficar cego, meto uma bala na cabeça". Não "uma bala na cabeça"; daria um tiro no peito como Getúlio. Ah, Getúlio estourou o coração mas preservou sabi amente a cara para a História e para a lenda. Pelo vidro do caixão, o povo espiou o rosto, o perfil intactos. Kennedy, não. A bala arrancou-lhe o queixo forte, crispado, vital. Tiveram que fechar o caixão. O povo precisa ver o seu líder morto. Nada, nem medalha, nem estátua, nem cédula, nem selo substitui o último rosto, o rosto morto.

Muitos anos depois, conheci Lúcia. Lembro-me de que, numa de nossas conversas, falei-lhe assim: — "Desde criança, tenho medo de ficar cego. Mas se isso acontecesse, eu...". Fiz a pausa e completei: — "...eu meteria uma bala na cabeça". Isso era e não era uma agressão sentimental, uma espécie de terrorismo. Afinal, o amoroso é sincero até quando mente. No fundo, no fundo, as minhas palavras queriam dizer outra coisa, ou seja: — "Mesmo cego, eu viveria se você me amasse". Por outro lado, sei que não é normal essa fixação numa fantasia infantil. Mas não tenho medo de confessar a minha morbidez, nem ela me envergonha. Eu a compreendo e a recebo como uma graça de Deus.

Mas estas notas não estariam completas, se eu não lhes acrescentasse uma explicação. Quero dizer que o medo de uma cegueira utópica, apenas sonhada, me tornou humanamente melhor. Ou, se não me tornou melhor, me deu a vontade obsessi va de ser bom. Mas, como ia dizendo, continuou o meu romance com Lúcia. Pouco a pouco, fui dizendo as coisas que são tudo para mim: — "Todo amor é eterno e, se acaba, não era amor". E dizia: — "Quem nunca desejou morrer com o ser amado não amou, nem sabe o que é amar". As nossas conversas eram tristes, porque o amor nada tem a ver com a alegria e nada tem a ver com a felicidade. Quando nos casamos, eu lhe disse: — "Nem a morte é a separação". Ela concordou que nada é a separação.

Depois, a gravidez. Ah, quando eu soube que ela só podia ter filho com cesariana. Não me falem em fio de navalha. O fio da navalha é um título de romance ou de filme. Mil vezes mais frio, e diáfano, e macio, e ímpio, é o fio do bisturi da cesariana. O marido, cuja mulher só pode ter filho com cesariana, terá de amá-la até a última lágrima.

"Se for menina, o nome é Daniela", disse Lúcia. Achei um nome doce e triste (gosto dos nomes tristes) de personagem de Emily Brontë. Uma noite, Lúcia foi internada, às pressas, na Casa de Saúde São José. Parto prematuro. Minha mulher chega com Dr. Cruz Lima e d. Lidinha. Dr. Marcelo Garcia e Dr. Silva já estavam lá. Foi uma correria de médicos, enfermeiras, irmãs. Dr . Waldyr Tostes ia fazer o parto.

Naquela noite, pensei muito no staretz Zózimo. Sim, na bondade absurda, senil e terrível do personagem dostoievskiano. Há um momento em que somos o staretz Zózimo. Dr. Marcelo Garcia era o staretz, e o Dr. Silva Borges, e o dr. Waldyr Tostes. Dr. Cruz Lima também era o staretz Zózimo. Tudo aconteceu numa progressão implacável. Daniela nasceu e não queria respirar. Dr. Marcelo Garcia fazia tudo para salvar aquele sopro de vida. De manhã, quase, quase a perdemos. A irmã de Lúcia, desesperada, batizou minha filha no próprio berçário. Dr. Cruz Lima, dr. Marcelo, Silva Borges lutaram corpo a corpo com a morte. Mudaram o sangue da garotinha. E ela sobreviveu.

Lúcia quis ver a filha no dia seguinte. E veio numa cadeira de rodas, empurrada por sua mãe, D. Lidinha. Voltou chorando, e dilacerada de felicidade. Também fui espiar Daniela pelo vidro do berçário. Uma enfermeira aparece e me pergunta, risonhamente: — "O senhor é o avô?". Respondi, vermelhíssimo: — "Mais ou menos". Mais uma semana, Lúcia e Daniela vinham para casa. Tão miudinha a garota, meu Deus, que cabia numa caixa de sapatos.

Dois meses depois, dr. Abreu Fialho passa na minha casa. Viu minha filha, fez todos os exames. Meia hora depois, descemos juntos. Ele estava de carro e eu ia para a tv Rio; ofereceu-se para levar-me ao posto 6. No caminho, foi muito delicado, teve muito tato. Sua compaixão era quase imperceptível. Mas disse tudo. Minha filha era cega."


* Originalmente publicado no dia 2 de dezembro de 2010


2 comentários:

  1. Arsenio era o contraditório necessário aqui no blog.Fazes falta ao nosso convívio,amigo...

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  2. André falou e disse.João Rubronegro inesquecível irmão.E o texto ? Apenas um dos melhores que já li (e reli e reli)derna que inventaram o rock and roll... e a literatura.

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Comentários