5 de mar. de 2013






Roberto Vieira

O paquete Itaquera chegou ao porto do Recife às 11h00. Uma pequena multidão esperava os craques cariocas, entre os presentes, representantes de todas as equipes da Liga Pernambucana de Desportos Terrestres (LPDT). Nada foi esquecido. Duas bandas tocavam dobrados e valsinhas para entreter o povo. Logo que o navio entrou no porto, várias lanchas seguiram ao seu encontro embandeiradas. Pernambuco se rendia ao futebol. Pernambuco que havia organizado seu primeiro campeonato estadual no ano de 1915. Quatro anos antes desta manhã ensolarada de janeiro.
Após o desembarque, a comitiva se dirigiu ao Clube Helvética, onde foram oferecidos vermutes e bolinhos aos visitantes. O Sport Club do Recife, na pessoa do Sr. Carlos Lima, saudou os alvinegros. Sport que inaugurava a arquibancada de madeira da Avenida Malaquias e promovia a excursão botafoguense. Os vinte e um automóveis do cortejo prosseguiram saudados pela multidão até o Hotel do Parque, onde ficaram acomodados por conta dos rubro-negros pernambucanos. O chefe da embaixada, Sr. Oscar Gomes de Matos, e o capitão da equipe Osny Wernet agradeceram as homenagens e imaginaram que tudo seria um passeio.
O redator do ‘Paiz’, Carlos Stelling perguntava a todos pelo estágio do futebol pernambucano. Diante da acolhida digna de uma seleção inglesa dada aos seus amigos do Rio, Stelling teve a certeza de que viriam algumas goleadas naquela excursão. De noite, alguns jogadores pensaram em ir até o cinema Moderno assistir o romance policial ‘As Sete Pérolas’, entretanto um jantar os esperava na sede do Sport. No dia 26 de janeiro, o Botafogo pagou as gentilezas do Sport com um sonoro 6 a 1 no estádio da Avenida Malaquias. A goleada não afetou as relações entre os dois clubes. Tinha sido até de pouco, pensavam os rubro-negros.
O próximo jogo dos cariocas seria contra o Santa Cruz Football Club. Um clube esquisito para os padrões da época. Um time de brancos, negros, mulatos, doutores e analfabetos. Um time com apenas cinco anos de vida. As demais torcidas de Pernambuco não puderam reprimir o riso. Os meninos tricolores iam levar uma surra daquelas! Ainda mais que o Santa Cruz parecia ter um azar dos diabos. Em quatro campeonatos pernambucanos disputados até aquela data, o clube do Largo da Santa Cruz havia sido vice-campeão por quatro vezes. Título que era bom, só no pendura.
Nesse ânimo, o Botafogo, vice-campeão carioca de 1918, entrou novamente no estádio da Avenida Malaquias no dia 30 de janeiro de 1919 alinhando Cazuza; Osny e Monti; Pollice, Vadinho e Burlamaqui; Celso, Petiot, Santinho, Garcia e Neco. Já o Santa Cruz, vice-campeão pernambucano de 1918, zebra em todas as bocas da crônica esportiva local, escalou Ilo; Bebé e Jorge; Zé de Castro, Theophilo, M. Pedro; Eurico, Pitota, Tiano, Miranda e Nequinho. O público superlotava o pequeno estádio. Talvez o maior até aquele momento em Pernambuco para uma partida de futebol. O árbitro seria justamente o Sr. Stelling, o curioso redator do ‘Paiz’.
Foi melhor assim. Porque naquele dia nasceu o futebol pernambucano.
A preliminar já tinha sido um aviso. O segundo time do Santa Cruz vencendo um combinado dos segundos times de Botafogo e Sport por 2 a 0.
O Botafogo começou atacando com a audácia dos que se imaginam invencíveis. O Santa Cruz se defendia com a faca entre as presas corais. O arqueiro Ilo fazendo milagres. Ilo que havia recebido um escudo de ouro do Santa Cruz momentos antes da pugna, em sinal de gratidão pelos feitos heróicos sob as traves. O primeiro tempo é duro, muito mais duro do que supunham anteriormente os alvinegros, mas no último minuto um chute de Petiot é defendido parcialmente por Ilo Just de munhecaço, a pelota chega aos pés de Santinho que emenda de primeira para nova defesa de Ilo. Na terceira tentativa, Petiot empurra a bola para as redes: Botafogo 1 a 0.
Parecia que o destino estava escrito. Porém, o Santa Cruz havia resistido o tempo suficiente para aprender a sonhar.
Quando o segundo tempo inicia, Nequinho dribla pela esquerda e cruza na medida para o genial Tiano empatar a peleja. O gol contagia a platéia que grita em uníssono o nome do Santa Cruz. O Botafogo sente que perde as rédeas do espetáculo. Miranda rouba a bola no meio de campo e enfia na ponta para Pitota – apelido do ídolo Alcindo Wanderley. Pitota manda bala e Cazuza salta no vazio. Parece mentira. Ilusão. O Santa Cruz está vencendo o Botafogo por 2 a 1.
Pressão do campeão de 1910. A bola vai entrando e Jorge salva. O juiz Stelling vê bola na mão. Bola na mão é pênalti. Vaias na multidão. O Santa Cruz protesta, mas quem já viu juiz voltar atrás em sua decisão? Ilo se coloca na barra. Monti cobra a penalidade e a bola se choca contra a trave, Ilo salta e desvia, Monti se joga com as mãos e empata a peleja. Ante o olhar atônito da torcida e dos jogadores, Stelling valida o tento de Monti.
Pra quem se imaginava derrotado, quem sabe goleado, o empate já seria grande coisa. Mas os jogadores tricolores olham para a multidão em sua volta e se imaginam craques. Nenhum clube pernambucano havia vencido um clube do Rio ou de São Paulo até aquela data. Eram goleadas e mais goleadas. Vexames, até. O público aplaude os jogadores do Santa Cruz e os jogadores decidem mudar a história. O destino é o craque quem faz.
Tiano recebe de Theophilo e vislumbra Nequinho livre. No instante seguinte Cazuza se vê frente a frente com Nequinho. Dois segundo depois o estádio da Avenida Malaquias estremece com arquibancadas de madeira e tudo. O Santa Cruz acaba de marcar seu terceiro gol. A festa é tanta que até hoje não se sabe se o gol foi de Nequinho ou de Tiano. Tiano, craque e goleador. Nequinho que jogava no segundo quadro, e somente atuou porque o titular Anísio estava machucado.
O jogo aconteceu há 91 anos. Nessa quarta-feira, Santa Cruz e Botafogo se encontram novamente em Recife pela Copa do Brasil. O Botafogo da Estrela Solitária. O Santa Cruz, antigo Terror do Nordeste.
Mas o jogo de 1919 permanece inesquecível na memória pernambucana.Como a primeira vitória de um clube pernambucano sobre um grande do Rio ou de São Paulo. Para muitos, o maior jogo do século XX em nossa terra. Para muitos, o dia em que o futebol pernambucano nasceu…

Categories: , ,

2 comentários:

  1. Mestre, aguardo ansiosamente mais um post sobre o velho Mequinha.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Meu querido América... rs. Contando as horas para iniciar a Série A2... :-)

      Excluir

Comentários