Por ROBERTO VIEIRA
Morrera sem ter chance de dizer adeus. Uma curva na
estrada, derrapagem e o nada absoluto. As notícias chegaram desencontradas e o
velório também. Filhos inconsoláveis e viúvo com olhar de quem perdera quase
tudo na vida. Tinha de ser forte para amparar os filhos. Entre abraços dos
familiares, apenas uma figura permanecia indecifrável. Aquele homem de cabelos
castanhos e olhos vermelhos.
Tão silencioso quanto chegara, ele se foi. Não falou
com ninguém e ninguém falou com ele. Porém, possuía no rosto toda dor desse
mundo.
Chegou em casa e a casa parecia imensa, inexplorável
estando sozinho. As roupas dela estavam no guarda roupa e na cama, como se no
dia seguinte tudo voltasse ao normal, bastando fechar os olhos.
Não voltaria.
A polícia lhe devolvera os pertences da esposa que
estavam jogados no chão da estrada. O dinheiro havia sido roubado, assim como o
celular e o rádio do carro. Ficaram apenas documentos, chaves da casa, fotos
dos filhos e um livro de poesias do Gullar. Estranho que um ser humano se
resumisse a tão pouco após a morte.
A sogra chegou ao apartamento para visitar os netos.
Ela queria alguns álbuns antigos e fotos da filha que serviriam pra matar a
saudade e angústia que tomavam conta do seu semblante já velho e agora mais
envelhecido ainda pela tragédia. Não fez objeção. Nem sabia que existiam tais
álbuns e tais fotos. A sogra foi no armário e pegou o que queria. Antes de
sair, agradeceu por ter aceitado a visita de Diniz no dia do velório sem se
alterar.
‘Diniz?’
A sogra franziu a testa. Ele não sabia. Rapidamente,
ela se desculpou e disse que falara demais, coisas da idade. Saiu apressada com
o passado entre as mãos e deixou aquele nome ressoando na sala.
‘Quem era Diniz?’
Será que Diniz era o responsável pelos olhares
distantes da esposa? Será que Diniz era aquele homem de cabelos castanhos e
olhos vermelhos que parecia carregar toda a dor desse mundo? Será que havia
mais alguém na história de sua esposa?
Não era impossível. Afinal de contas, ela era bonita
e cheia de vida. Sua vida era um livro aberto com algumas histórias sem
explicação. Páginas que se iniciavam solenes e se encerravam noturnas. Milhares
de silêncios em madrugadas nas quais ele nunca ousara tocar.
Mas pensava que sabia quase tudo sobre ela. Pensava
que tinha sido pelo menos seu último grande amor. Pensava que o passado eram
páginas viradas desse livro e que não havia mais ninguém que pudesse ocupar
tanto assim seu pensamento.
Os filhos acordaram, eles se abraçaram e os dias se
foram na tarefa árdua e necessária de viver. A vida que se faz estrada mesmo
quando imaginamos que nossa dor e luto serão eternos.
Meses se passaram. Estava só em casa. Havia velhos
papéis de sua esposa que permaneciam intocados. Quem sabe resposta para o
enigma que se arrastava qual corrente fantasmagórica pelos dias e semanas?
Abriu uma gaveta e lá estava o livro de Gullar. Foi ler um pouco e ao abrir a
primeira página, lá estava a dedicatória singela e definitiva:
‘Ao amor da minha vida, Diniz’
Fechou a página, o livro, o dia. Sentiu aquela
sensação de cansaço milenar e oceânico. As curvas da estrada haviam lhe roubado
o amor.
As páginas de Gullar haviam lhe traduzido a vida...
·
Baseado no triângulo amoroso de Ferreira
Gullar, Nara Leão e Cacá Diegues
Não sabia desse triângulo amoroso. Sei apenas que, independentemente dos personagens, o texto de Roberto é dos mais belos.
ResponderExcluir