3 de mar. de 2015






Por ROBERTO VIEIRA       




Morrera sem ter chance de dizer adeus. Uma curva na estrada, derrapagem e o nada absoluto. As notícias chegaram desencontradas e o velório também. Filhos inconsoláveis e viúvo com olhar de quem perdera quase tudo na vida. Tinha de ser forte para amparar os filhos. Entre abraços dos familiares, apenas uma figura permanecia indecifrável. Aquele homem de cabelos castanhos e olhos vermelhos.
Tão silencioso quanto chegara, ele se foi. Não falou com ninguém e ninguém falou com ele. Porém, possuía no rosto toda dor desse mundo.
Chegou em casa e a casa parecia imensa, inexplorável estando sozinho. As roupas dela estavam no guarda roupa e na cama, como se no dia seguinte tudo voltasse ao normal, bastando fechar os olhos.
Não voltaria.
A polícia lhe devolvera os pertences da esposa que estavam jogados no chão da estrada. O dinheiro havia sido roubado, assim como o celular e o rádio do carro. Ficaram apenas documentos, chaves da casa, fotos dos filhos e um livro de poesias do Gullar. Estranho que um ser humano se resumisse a tão pouco após a morte.
A sogra chegou ao apartamento para visitar os netos. Ela queria alguns álbuns antigos e fotos da filha que serviriam pra matar a saudade e angústia que tomavam conta do seu semblante já velho e agora mais envelhecido ainda pela tragédia. Não fez objeção. Nem sabia que existiam tais álbuns e tais fotos. A sogra foi no armário e pegou o que queria. Antes de sair, agradeceu por ter aceitado a visita de Diniz no dia do velório sem se alterar.
‘Diniz?’
A sogra franziu a testa. Ele não sabia. Rapidamente, ela se desculpou e disse que falara demais, coisas da idade. Saiu apressada com o passado entre as mãos e deixou aquele nome ressoando na sala.
‘Quem era Diniz?’
Será que Diniz era o responsável pelos olhares distantes da esposa? Será que Diniz era aquele homem de cabelos castanhos e olhos vermelhos que parecia carregar toda a dor desse mundo? Será que havia mais alguém na história de sua esposa?
Não era impossível. Afinal de contas, ela era bonita e cheia de vida. Sua vida era um livro aberto com algumas histórias sem explicação. Páginas que se iniciavam solenes e se encerravam noturnas. Milhares de silêncios em madrugadas nas quais ele nunca ousara tocar.
Mas pensava que sabia quase tudo sobre ela. Pensava que tinha sido pelo menos seu último grande amor. Pensava que o passado eram páginas viradas desse livro e que não havia mais ninguém que pudesse ocupar tanto assim seu pensamento.
Os filhos acordaram, eles se abraçaram e os dias se foram na tarefa árdua e necessária de viver. A vida que se faz estrada mesmo quando imaginamos que nossa dor e luto serão eternos.
Meses se passaram. Estava só em casa. Havia velhos papéis de sua esposa que permaneciam intocados. Quem sabe resposta para o enigma que se arrastava qual corrente fantasmagórica pelos dias e semanas? Abriu uma gaveta e lá estava o livro de Gullar. Foi ler um pouco e ao abrir a primeira página, lá estava a dedicatória singela e definitiva:
‘Ao amor da minha vida, Diniz’
Fechou a página, o livro, o dia. Sentiu aquela sensação de cansaço milenar e oceânico. As curvas da estrada haviam lhe roubado o amor.
As páginas de Gullar haviam lhe traduzido a vida...


·         Baseado no triângulo amoroso de Ferreira Gullar, Nara Leão e Cacá Diegues


Um comentário:

  1. Não sabia desse triângulo amoroso. Sei apenas que, independentemente dos personagens, o texto de Roberto é dos mais belos.

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Comentários