8 de jan. de 2009




O conto abaixo, é uma homenagem ao imenso poeta João Cabral de Melo Neto.

João Cabral que nasceu aqui perto, na Jaqueira.

No dia 9 de janeiro de 1920.

João Cabral, torcedor inveterado do América de Recife.

América que conquistou seu último título em...


'DEZESSETE'


Por ROBERTO VIEIRA


Rio de Janeiro , 21 de fevereiro de 1945

Prezado primo Manuel,

A felicidade me invade o peito. Como se houvesse terminado um poema. Até minhas terríveis dores de cabeça desapareceram. Acho que foi este jejum prolongado, como o jejum de um retirante, quem me causava tanto mal. Contei estes dezessete anos como se conta as horas num relógio enjaulado. Foram anos de inferno, Manuel. E eu não pensei que o inferno pudesse advir do amor que eu tenho por um time de futebol.

Ontem, fui dormir feliz. De longe chegou a noticia que o meu querido América vencera o Náutico por 3x0. Em quatro jogos decisivos, três vitórias maiúsculas. O que mais posso eu desejar dessa vida? Apenas me dói o fato de não estar no Recife. Soube que uma multidão conduziu nossos jogadores até o Bar Savoy. Soube que a Ilha do Retiro foi pequena para acomodar tantos quantos quiseram assistir nosso momento de glória.

Sabe como me arrependo de ter jogado pelo Santa Cruz. Eu queria, na verdade, usar o manto verde e branco. Mas eram coisas da idade.

Manuel, mas apresso-me em te contar. Eu, que como sabes, sou o mais descrente dos crentes, cansado de tantas derrotas durante tantos anos, decidi provocar o Criador. Quando o ano começou e foram anunciadas as partidas decisivas, absolutamente certo de que o Náutico seria campeão, chamei o Criador para uma armadilha. Disse-lhe que, caso o meu América vencesse, eu me daria por satisfeito. Poderia ser o último título conquistado. Poderia não ser campeão mais nunca. Eu ficaria feliz com aquele título.

Como Deus não existe, ou não haveria essa vida Severina (gostei desta expressão, talvez eu torne a usa-la no futuro), seria uma mera experiência literária.

No primeiro jogo dessa absurda e interminável disputa final, o inesperado acontece: O América triunfa!

Calei em meu canto, desconfiado.

Mas não havia de ser nada. Quase que torcendo contra meu time do coração, aguardei o resultado da segunda peleja. Empate. Menos mal, o universo parecia estar voltando para o seu lugar devido. E, durante um certo tempo, acalentei novamente a certeza no meu mundo material. Pois tu sabes, inspiração eu deixo contigo. Não me deixo levar por esta quimera.

Manuel. Chegou então o momento do terceiro jogo. Acordei convicto de que ali terminavam minhas dúvidas metafísicas.

E o América venceu novamente!

Tranquei-me em mim mesmo. O mundo inteiro em guerra e eu convalescendo de uma absurda dúvida existencial.

Conto a ti estas coisas, pois sei que somos diferentes. Tens inspiração, lirismo, lembranças que eu não consigo ter. Quem sabe, tens até fé em Deus? Não essa fé social, mas uma fé real, idealista. Eu lia versos de cordel para os empregados lá do engenho, eu tinha pena deles, mas uma pena racional. Uma pena da vida e da morte daqueles pobres diabos. Que já vivem no inferno.

Mas agora, tratava-se de um fato totalmente diverso. Os céus subitamente ganhavam vida. E o América, subitamente, parecia uma máquina platina de jogar futebol. Ia triturando os alvirrubros. Sem dó nem piedade.

No dia de ontem, fui para meu quarto e lá me tranquei. Li muito. Dormi um pouco. E quando as horas do jogo se escoaram, busquei saber notícias do Recife. Estava novamente racional. Não cogitava que poderes sobrenaturais controlassem uma pelota, vinte e dois homens e um mero jogo. Mal disfarçando, porém um certo nervosismo, escutei quando alguém gritou lá de dentro que mandassem me avisar: O América era campeão pernambucano!

Enlouqueci, Manuel. Confesso que perdi meu prumo durante alguns instantes, e caso estivesse em Recife, teria sido uma festa. Imaginei tantos anos de sofrimento. Imaginei Recife coberto de verde. Vou querer pintar o Bar Amarelinho com outras cores amanhã. E diabos, ninguém conhece meu América aqui no Rio!

Agora, restabelecido e feliz, eu sei que tudo não passou de um surto de superstição. Uma insanidade temporária. Uma perda momentânea da razão. O América era de fato um esquadrão invencível. Ano que vem será, aliás daqui a alguns meses, será bicampeão. Hoje somos os campeões de 1944, mesmo estando em 1945. Coisas deste futebol brasileiro, que nunca foi muito sério.

Deus, se é que existe, deve estar cuidando de outras coisas mais importantes.

Um abraço, meu caro Manuel Bandeira,

Do seu primo,


João Cabral de Melo Neto


PS:Perdão se na emoção que agora sinto, a cronologia dos fatos houver me traído a memória. Em tempo, nosso primo Gilberto deve estar se descabelando com as derrotas do seu Esporte!





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